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Nilson Gomes de Oliveira

O Direito como instrumento de dominação racial no Brasil

Atualizado: 26 de nov. de 2020


Foto: Domingos Leonelli

O ano de 2020, marcado pela pandemia da Covid-19, tem provocado reflexões, discussões, debates e intervenções de intelectuais, estudantes, movimentos sociais e instituições em geral.


Esse contexto é fundamental, apesar de muita dor e sofrimento em decorrência das mortes provocadas pela covid-19. A partir do atual movimento histórico mundial e nacional, temos a oportunidade de evidenciar as bases racistas do sistema social proposto pela sociedade ocidental branca.


No primeiro semestre de 2020 a partir da morte de George Floyd por um policial branco nos Estados Unidos sob a pandemia do coronavírus emergiu uma onda antirracista sistemática de questionamentos sobre as relações raciais no mundo que impactaram o debate público no Brasil.


Com a emergência de um debate antirracista no Brasil, é preciso falar também sobre o Direito como um campo que contribuiu para a dominação social, política e econômica dos brancos sobre os negros.


Para iniciar essa discussão, partimos da seguinte pergunta: o direito é branco e de classe? Num primeiro momento essa pergunta parece simples, porém implica em uma reposta complexa.


A história do direito no Brasil é construído pelo sistema colonial e escravocrata que dividia corpos negros dos corpos brancos de um ponto de vista racial e jurídico, enquanto o direito na Europa do século XVII, XVIII e XIX se desenvolvia sob a luz dos direitos civis e políticos com um viés de classe.


O direito é de base eurocêntrica e de classe, em que o sujeito de direitos foi a construção do projeto de homem iluminista e branco, que propunha as relações sociais e econômicas reguladas pelo mundo jurídico, garantindo a vida, a liberdade e a dignidade. Porém, o direito ao chegar ao Brasil colônia, em especial com a vinda da família Real em 1808, e sobretudo no Brasil Imperial (1822-1889), o Direito operou sob um contexto em que classe social não era a ordem do dia e que a base de dominação econômica era dominação europeia do homem civilizado sobre os povos selvagens do Novo Mundo, que não tinham nem Rei, nem Lei e nem Estado do ponto de vista europeu.


Nesse bojo, a formação jurídica era um marcador social e de raça, em decorrência de uma sociedade marcada pela autoridade do senhor da casa grande. É de conhecimento geral que o Brasil colonial e imperial passou por um processo político e social de formação econômica excludente e racista, enquanto a Europa se agitava com eventos políticos e sociais visando a construção ontológica do homem branco europeu, sendo o iluminismo o fenômeno mais notório.


Silvio Almeida (2019) afirma que o iluminismo foi o fundamento filosófico das grandes revoluções liberais que em nome da liberdade visava abolir a sociedade absolutista por uma moderna sociedade burguesa.


Karl Marx em 1848 no Manifesto do Partido Comunista já lançava mão sobre a “descoberta” do Novo Mundo como uma maneira de entender as grandes navegações europeias na África e na América como um campo de ação das mercadorias. Ele esqueceu de acrescentar que o campo de ação das mercadorias era produto direto da exploração dos corpos negros, em que somente a civilização branca usufruía dos avanços jurídicos e econômicos da sociedade capitalista que substituiu a sociedade feudal.


Silvio Almeida (2019) diz que as revoluções inglesas, americana e a francesa reorganizaram o mundo. Com essa reorganização, o sistema colonial sustentou as grandes metrópoles europeias com a escravidão dos povos negros. Por isso, o projeto liberal-iluminista de homem e sociedade não tornava todos os homens iguais.


Almeida (2019) ao afirmar que o projeto-iluminista não propunha igualdade para todos os povos, exemplifica a Revolução Haitiana em 1791 como o momento em que iluminismo europeu foi posto de frente com o seu princípio de liberdade e não reconheceu a liberdade para um provo que não fosse branco. Isso é tão forte, que nos cursos de Direito ao estudar Direitos Humanos, a Declaração de Direitos do Homem e do Cidadão na Revolução Francesa de 1789 é o marco histórico do ensino jurídico, alçando tal declaração como símbolo de liberdade. Isto significa que o direito moderno é resultado da produção intelectual do homem branco.


Não é por acaso que Frantz Fanon (2008) em Pele Negra, Máscaras Brancas reivindica a história do negro antilhano na sociedade francesa do século XX, como uma história de inferioridade fruto de processo econômico e psicológico em que o negro ao dominar a língua francesa poderia ser enxergado como um branco.


É por isso que devemos pensar o papel do Negro no caso brasileiro, a partir dos ensinamentos de Abdias do Nascimento (1978) dizendo que o Negro escravizado foi o pilar da história econômica do Brasil, sob o signo do parasitismo imperialista. Isso não foi diferente no campo jurídico, afinal, o sujeito de direito digno de ser assistido pelo Estado era o homem branco colonizador que se afirmava como colonizador diante da condição jurídica de escravo do negro. O domínio do homem branco sobre os corpos negros no processo histórico brasileiro não foi somente um domínio de raça, mas foi também um domínio jurídico.


Portanto, dizer que o direito é branco e de classe não é dizer somente dizer que o direito é branco e de classe, é dizer que o direito nasceu branco e de classe e de raízes eurocêntricas. É de sua natureza dominar e controlar a sociedade, e no caso brasileiro o seu controle e domínio esteve a serviço dos brancos.


Quando Sérgio Buarque de Holanda (2014) registra em Raízes do Brasil que a formação bacharelesca caracteriza a sociedade brasileira, é porque a dominação dos brancos sobre os negros foi uma dominação social, econômica e jurídica. Por isso, que Silvio Almeida (2019) conclui que o sistema colonial imposto no Brasil é um exemplo perfeito de antiliberalismo jurídico.


É nesse sentido que hoje devemos discutir a desigualdade racial no campo jurídico brasileiro. Tomemos como exemplo, o Poder Judiciário a partir da sua composição étnico-racial.


O Poder Judiciário de acordo com a Constituição Federal de 1988 está dividido em Justiça Comum ou Ordinária (Justiça Federal, Estadual) e Justiça Especializada ou Extraordinária (Justiça Trabalhista, Eleitoral e Militar).


Em 2013 o Conselho Nacional de Justiça (CNJ) realizou o Censo do Judiciário e o resultado da pesquisa foi de que nos Tribunais Superiores a presença de juízes negros é de 15,6% e juízes brancos é de 84,2%. Na Justiça Federal os negros ocupam somente 13,3% dos cargos de juízes e os brancos ocupam 86,6% dos cargos. Na Justiça Estadual, 10,1% dos magistrados são negros e 84,3% são brancos.


A Justiça do Trabalho é composta por 10,2% de juízes negros e 82,8% de juízes brancos. No âmbito da Justiça Eleitoral temos 22,5% de juízes negros e 78,3% de juízes brancos. Por fim, a Justiça Militar Estadual é composta por 8,9% de juízes negros e 91,1% de juízes brancos.


De acordo com o Censo do Judiciário em 2013 a estrutura jurisdicional brasileira é predominantemente branca. Em virtude desse cenário, o Conselho Nacional de Justiça (CNJ) editou a resolução 203 de 2015 que dispõe sobre a reserva de vagas aos negros no Poder Judiciário de 20% em concursos públicos para o ingresso na magistratura.


A iniciativa do CNJ em promover ações afirmativas no Judiciário é uma amostra de que é possível construir alternativas jurídicas para combater a desigualdade racial no judiciário, porém não é um fim em sim mesmo. Precisamos de mais discussões sobre o tema para construir caminhos e propostas que possam romper com a estrutura jurisdicional brasileira de maioria branca.


Este breve sobrevoo na composição étnico-racial no Poder Judiciário indica a força do racismo institucional. Mostrando como o campo jurídico no Brasil foi pautado como um processo de dominação racial dentro do Estado.


Do ponto de vista histórico a estrutura jurídica no Brasil é branca, construída por uma dominação dos brancos sobre os negros, enquanto a estrutura jurídica moderna ocidental europeia foi marcada por uma dominação de classe social.


Mas do ponto de vista contemporâneo o direito brasileiro continua sendo branco, e hoje também é de classe. Portanto, a passagem do Brasil Imperial para o Brasil contemporâneo herdou a estrutura jurídica branca, potencializada por uma estrutura social competitiva e de classe.


REFERÊNCIAS


ALMEIDA, Silvio Luiz de. Racismo estrural / Silvio Luiz de Almeida – (Feminismos Plurais / coordenação de Djamila Ribeiro) – São Paulo: Pólen, 2019.


FANON, Frantz. Pele negra, máscaras brancas / Frantz Fanon; tradução de Renato da Silveira. – Salvador: EDUFBA, 2008.


FERNANDES, Florestan. A Integração do Negro na Sociedade de Classes (o legado da “raça branca”), volume 1. São Paulo: Globo, 2008.


HOLANDA, Sérgio Buarque. Raízes do Brasil / Sérgio Buarque de Holanda. – 27ª ed. – São Paulo: Companhias das Letras, 2014.


MARX, Karl. Manifesto do partido comunista / Karl Marx, Friedrich Engels. – 1.ed. – São Paulo: Expressão Popular, 2008.


http://www.stf.jus.br/portal/cms/verTexto.asp?servico=sobreStfComposicaoComposicaoPlenariaApresentacao acessado em 26 de julho de 2020.


https://www.cnj.jus.br/pesquisa-do-cnj-quantos-juizes-negros-quantas-mulheres/ acessado em 26/07/2020.


As opiniões contidas neste texto não refletem necessariamente a opinião do Coletivo Utopia Negra.

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