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Foto do escritorHigor Pereira

Apagão no Amapá: o descaso e o desinteresse público são, além de tudo, racistas

Atualizado: 26 de nov. de 2020


Foto da capa: Rujda Santoa

Macapá, 11 de novembro de 2020, nono dia de apagão


Estou escrevendo da zona oeste de Macapá, mais precisamente da Rodovia Duca Serra, que liga a capital do Amapá ao município de Santana (segunda maior cidade amapaense). Aqui temos energia elétrica desde as 6h40 da manhã de hoje, 40 minutos após o horário estipulado pela Companhia de Eletricidade do Amapá (CEA) para o início das 6 horas com fornecimento de energia para meu bairro pelo sistema de rodízio. A cada 6 horas o fornecimento é interrompido e só 6 horas depois voltamos a ter energia. O sistema de revezamento proposto pela CEA, porém, é uma bagunça total. De domingo para segunda, por exemplo, ficamos sem luz por 13 horas seguidas. E assim tem sido a vida do amapaense desde sábado, 7.


Quando amigos de outros Estados me perguntam como estou, respondo que aqui em casa o pior já passou. Isso é em parte verdade, já que entre os dias 3 e 7 de novembro não tivemos energia nem pelas míseras 6 horas do rodízio e tivemos que nos submeter a coisas inimagináveis para conseguir água e “dormir” à noite. Mas nem isso milhares de outras famílias têm, já que há localidades ainda não contempladas pelo rodízio.


Algo que tenho dito desde o início desse tormento é que o apagão no Amapá é duplo: nos falta energia elétrica (e, consequentemente, ficamos sem água, sem alimentos, sem internet...) e nos falta informação. O incêndio na subestação 1 da Zona Norte ocorreu na noite do dia 3 de novembro, mas somente na quinta-feira, 5, começamos a ter noção do que estava de fato acontecendo. Isso porque o Governo do Estado, a Companhia de Eletricidade do Amapá e o Ministério de Minas e Energia ficaram em silêncio. Deixaram a população sem qualquer perspectiva e à mercê de todo tipo de fake news, especulação e preocupação.


Quando as informações começaram a chegar, porém, elas causaram temor, revolta e indignação. Os prazos para a normalização no fornecimento de energia elétrica para o povo do Amapá são absurdos: de 15 a 30 dias! O sistema de rodízio, como eu já disse, é uma bagunça e, vale acrescentar, é totalmente injusto: os horários divulgados não são seguidos; há bairros (principalmente do centro da cidade de Macapá e bairros nobres) em que o fornecimento de energia é feito 24 horas por dia; e mais da metade dos bairros ficam sem energia das 00h às 6h da manhã – o que tem causado grandes transtornos no sono da população, devido ao calor constante.


Por conta dos problemas de comunicação - somada ao apagão, foram dias de ausência total ou parcial de sinal de operadoras de telefonia e instabilidade nos serviços de internet, que ainda persistem - quase nada sabemos da situação da população e das comunidades do interior do Amapá. Há localidades onde não havia, mesmo antes do apagão, sinal de telefone ou internet e agora, nem nas sedes do serviço público municipal tem. Tudo isso tem dificultado o acesso à informações. Mas elas têm chegado aos poucos e são desoladoras.


Se na cidade já está uma situação difícil, no interior é um cenário exponencialmente pior.

No Arquipélago do Bailique, distrito de Macapá, falta energia há pelo menos 3 semanas. Com o apagão e a dificuldade de acesso à água potável em todo o estado, os mais de 7 mil moradores do Bailique encontram-se desesperados. Segundo relatos dos moradores, o rio está salgado (devido fatores que, admito, eu desconheço) e portanto impróprio para o consumo. Eles pedem socorro.


Nos quilombos mais próximos da capital, que fazem parte do que chamamos de Macapá rural, a situação não é menos preocupante. O rodízio de energia não alcançou, por exemplo, o Curiaú e a Casa Grande, comunidades remanescentes de quilombo muito próximas do perímetro urbano municipal. Ali, a população se revoltou e tem feito manifestações desde, pelo menos, sexta-feira, 6 de novembro. Manifestações estas que têm sido reprimidas pelo Estado.


Ficar sem energia e água pode, mas se revoltar não?



Foto: Rudja Santos/Reprodução Facebook

Essa pergunta também tem sido feita pelos moradores dos bairros periféricos e dos conjuntos habitacionais populares de Macapá – que têm se manifestado nas ruas já há vários dias e têm sofrido com a repressão policial pela Polícia Militar do Amapá e pelo Batalhão de Operações Especiais (BOPE). Balas de borracha, gás lacrimogêneo e até água (!!) são disparadas contra a população revoltada. O Estado não chega com energia e água potável, mas chega com violência e brutalidade. Na noite do dia 7 de novembro, uma criança de 13 anos foi atingida no olho por um tiro de bala de borracha que partiu da polícia militar. Ficou cega! Esse crime ocorreu no Congós, bairro periférico da Zona Sul de Macapá.


Algo em comum há em todos esses casos. Quem vive nesses bairros e localidades é uma população majoritariamente negra e pobre. Por isso, ainda que o apagão tenha atingido, ao menos parcialmente, toda a população do Amapá, é muito evidente que as “soluções” apresentadas (como o rodízio de energia elétrica) não têm atendido minimamente aos interesses de quem compõe mais de 80% do povo amapaense: os negros. De outro modo, a repressão do Estado é totalmente voltada para essa mesma parcela da população. Não há qualquer relato de violência policial em bairros nobres, nos quais vivem os amapaenses brancos, ricos e muita gente da classe política, que hoje anda disputando cargos nas eleições municipais.


A solidariedade entre nós tem sido nossa única arma


Fotos: Cleiton Rocha. Distribuição de água potável no bairro Congós, zona sul de Macapá


Ontem, 10 de novembro, recebemos a informação de que os povos indígenas do Oiapoque (município não atingido pelo apagão) estão enviando para Macapá sacas de farinha de mandioca para distribuição entre os moradores das áreas de ponte. Coletivos negros e parceiros, como a Utopia Negra Amapaense, a Rede Fulanas, o Quilombo Sankofa e outros têm recebido doações de água, alimentos e dinheiro, revertido na compra de itens básicos para a sobrevivência para distribuição em áreas quilombolas e bairros periféricos.


Onde o Estado e as representações políticas não chegam - e nem querem chegar, a gente se vira. É nós por nós.



As opiniões contidas neste texto não refletem necessariamente a opinião do Coletivo Utopia Negra.

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