A Universidade Federal do Amapá - Unifap, instituição pública criada em 1990, vem desde o início da implementação das políticas de cotas no Brasil, enfrentando problemas no processo de efetivação das ações afirmativas e em buscar caminhos de orientação ao público que tem nas cotas uma possibilidade viável de entrar na universidade.
Print tirado do grupo do whatsapp denominado "PPI" formado por alunos que não foram aprovados pelo sistema de cotas da UNIFAP
Sendo assim é necessário um caminho de maior compromisso social, político e histórico com essa política pública que é uma conquista do movimento negro. Desde de 2017 sempre envolve o mesmo curso– Medicina, no debate sobre as cotas na unifap e que alimenta o debate público sempre no sentido negativo, e não necessariamente em uma visão positiva e da sua importância, onde os desembargadores, médicos, advogados, políticos e empresários que compõem as classes média e alta atribuem a carreira médica para que seus filhos possam seguir tentam acionar suas estruturas de poder (mídia e judiciário) para colocar as cotas raciais sob suspeição. Mas, é importante salientar desde o início que, uma questão que atravessa a história desse país é que pessoas pardas (mestiças) eram consideradas "degeneradas" até pouco tempo pelas ideologias que compuseram, desde o princípio, aquilo que hoje nomeamos como racismo estrutural. O movimento negro do século XX fez um grande trabalho de engenharia política no processo de desconstrução dessa narrativa em relação ao pardo, e, ao mesmo tempo, buscou que esse pardo se reconhecesse como negro.
Aqui chegamos ao ponto fundamental que as políticas de ações afirmativas colocaram para as universidades. Todo mundo para concorrer às vagas pelas ações afirmativas podem se autodeclarar pardos ou pretos. Mas, isso não significa necessariamente que você seja uma pessoa negra e logo seja passível de ser admitido pelas bancas de heteroidentificação. Esse é um dos grandes erros, um erro de formação de base e escurecimento, que tanto a universidade como as escolas poderiam colaborar para que os estudantes compreendessem a complexidade que são as políticas públicas das cotas nas universidades, e ao mesmo tempo, contribuir para o aperfeiçoamento das bancas de heteroidentificação. Possíveis problemas de julgamento das bancas, frequentemente alegadas na UNIFAP, em nenhum momento descredibiliza a sua importância como um procedimento administrativo, jurídico e político de criar um mecanismo de contenção para barrar os fraudadores, nesse caso, os brancos.
Quando a regulamentação da política pública fala de “aferir”, “verificar” a “veracidade”, não se se trata de uma pretensa “verdade sobre a raça”, no sentido de um realismo ontológico, apelando para dados biológicos, essências irredutíveis, fixas e cristalizadas, ou porta-vozes indiscutíveis e “donos da verdade”. [...] Verificar a veracidade, portanto, encerra dupla tarefa: desvendar a que identidade racial (documental, privada, pública, social) referiu-se o autodeclarante, além de aferir se a vivência declarada atende, de modo concreto, à centralidade que os objetivos da política pública dão à raça social (RIOS, 2018, p. 236 apud RODRIGUES, 2020, p. 9)
Essa premissa é tão importante, que talvez esteja na base da falta de compreensão de muitos que foram desclassificados e não foram considerados habilitados para ocupar a vaga como pardos na banca de heteroidentificação da Unifap. Além disso, uma outra problemática é a falta de consciência e letramento racial tanto pelas famílias quanto pelos autodeclarados. É extremamente importante dizer que se você se autodeclara pardo no Brasil, no sentido político e histórico, você está se considerando negro. E nas bancas de heteroidentificação, o pressuposto para ser admitido é o candidato ter traços negroides. Justamente porque parte de uma ideia de que o modus operacional do racismo brasileiro parte do preconceito racial de marca. O que isso significa? Que o racismo opera a partir do corpo, quanto se evidencia traços negros, mais a pessoa é excluída dentro da nossa sociedade.
Considera-se como preconceito racial uma disposição (ou atitude) desfavorável, culturalmente condicionada, em relação aos membros de uma população, aos quais se têm como estigmatizados, seja devido à aparência, seja devido a toda ou parte da ascendência étnica que se lhes atribui ou reconhece. Quando o preconceito de raça se exerce em relação à aparência, isto é, quando toma por pretexto para as suas manifestações os traços físicos do indivíduo, a fisionomia, os gestos, o sotaque, diz-se que é de marca; quando basta a suposição de que o indivíduo descende de certo grupo étnico para que sofra as consequências do preconceito, diz-se que é de origem. Entre o preconceito racial de marca e o preconceito racial de origem, podem ser apontadas as seguintes diferenças. Quanto ao modo de atuar: o preconceito de marca determina uma preterição, o de origem, uma exclusão incondicional dos membros do grupo atingido, em relação a situações ou recursos pelos quais venham a competir com os membros do grupo discriminador (NOGUEIRA, 2006, p. 292 – 293)
Logo, quando a banca de heteroidentificação está diante de uma candidatura autodeclarado pardo, o preconceito racial de marca é levado em consideração. Porque é uma das características do racismo brasileiro. Mas, faço uma ressalva, as bancas de heteroidentificação precisam considerar o contexto racial, igualmente, de cada região. No nosso caso particular, muitas pessoas com fenótipo indígena se autodeclaram pardas, logo negras, isso é o campo da complexidade das relações étnicas-raciais na Amazônia. E muitas pessoas brancas se autodeclaram pardas na hora de acessar as ações afirmativas e nos cursos considerados de elite, mas de fato são brancas.
O caso em questão do indeferimento de muitas pessoas na Unifap pode ter passado por isso. Todavia, as bancas de heteroidentificação também devem ser aperfeiçoadas, como qualquer outro instrumento jurídico. Mas, sem elas, muitos brancos tentam se passar por pardos para acessar esses cursos de elite. Hoje, se formos em qualquer sala de aula de Medicina, ou qualquer outro curso de elite na Unifap, iremos perceber esse fenômeno: mesmo com as políticas de ações afirmativas, quase não se tem alunos pretos-pardos.
Sobre as bancas de heteroidentificação, é necessário um processo de aperfeiçoamento. Isso significa que antes das pessoas se autodeclararem, ela deveria escrever uma carta do porque ela se considera negra. Nesse aspecto será possível identificar primeiramente o processo social e psicológico da experiência que corpos racializados tem na sociedade brasileira, posteriormente a banca terá acesso prévio dessa leitura, no outro momento o candidato pode se autodeclarar, e assim seguir para o processo de validação dessa afirmação para ter acesso a essa política pública fundamental a população negra amapaense. Outro processo de aperfeiçoamento que as bancas de heteroidentificação da Unifap precisam passar, é sua publicidade e divulgação ampla de etapas que sucedem a avaliação da sua autodeclaração. A escolha da banca tem que ser pública, os membros técnicos administrativos que a compõem, precisam passar por um processo de qualificação sobre as relações étnicas-raciais, é necessário ainda ter estudiosos e pesquisadores das questões étnico-raciais nas bancas, assim como uma chamada pública para que o movimento negro e a sociedade civil possam fazer parte do quadro das bancas de heteroidentificação. Essa etapa prévia pode dar maior credibilidade para as decisões das bancas de heteroidentificação da Unifap e segurança para os membros que a compõem. Ao mesmo tempo em que é necessário ter, na banca de heteroidentificação, uma composição de banca que reflita a diversidade racial da sociedade, digo em relação às pessoas negras de pele clara ou pardos. Como sabemos, o contexto amazônico tem corporalidades muitos particulares, onde pessoas com fenótipos indígenas, devido ao processo da violência colonial, não sabem sua ancestralidade ou qual grupo racial pertencem, assim, é necessária uma orientação técnica para que a pessoa seja orientada e encaminhada a vaga específica seja ela étnico-racial (indígena) ou mesmo social/econômica, para que não se tenha nenhuma surpresa do seu processo de indeferimento das cotas na universidade federal. Assim como os brancos que se autodeclaram pardos.
A Unifap precisa assumir um papel importante no processo de escurecimento sobre quem tem direitos à política pública de ações afirmativas no Amapá. Um debate amplo com palestras, ações e cartilhas ao longo do ano para que possa orientar os estudantes advindos do Ensino Médio das nossas escolas públicas e privadas. Reiteramos novamente que se autodeclarar pardo ou se inscrever pelas cotas nos cursos, e principalmente no curso de elite de Medicina, não significa necessariamente que você seja uma pessoa apta a concorrer às cotas e seja lida como uma pessoa negra na sociedade amapaense.
No ponto de segurança é onde queremos chegar. Foi enviado para o/a Utopia Negra os comentários e argumentos utilizados pelos PPIs sobre a banca heteroidentificação e sobre a questão dos pardos, o material são prints dos grupos de WhatsApp. Nesse aspecto, percebemos que se tem um desconhecimento generalizado de quem pode acessar as ações afirmativas, de quem é lido como pardo e também sobre a credibilidade de uma pesquisadora e ativista de décadas do movimento, que é extremamente qualificada para estar nas bancas de heteroidentificação na referida universidade.
Tirando dúvidas de algumas informações e afirmações equivocadas no grupo PPI:
1 – “UNIFAP quer apenas os pardos com traços de negritude em suma querem apenas os que são mestiços com afrodescendentes” exatamente, justamente porque as cotas raciais implicam que a pessoa tenha o fenótipo negro para que possa ser considerada a habilitada como parda. Como colocamos no texto, considerando a diversidade fenotípica na Amazônia, e devido à falta de uma educação de letramento racial, pessoas com fenótipo indígena muitas vezes se consideram pardas, e cabe a banca de heteroidentificação poder dar a melhor orientação possível de como a pessoa pode proceder. E orientar os brancos a não se autodeclararem pardos só com objetivo de acessar o “sonho” de cursar os cursos de elite, as cotas raciais são para pessoas negras, indígenas e quilombolas!
1.1 – “Sim, é o racismo de negros com pessoas que não são negras” historicamente não foram as pessoas negras que criaram o racismo ou raça como um dispositivo de produção econômica colonial, logo, isso não existe, o racismo foi criado por brancos. Considerando o racismo estrutural na sociedade brasileira, a desigualdade racial só mantém a branquitude no topo da hierarquia racial. A violência, o genocídio da juventude negra, o encarceramento em massa, a desigualdade econômica, a pobreza e o feminicídio que atinge mais mulheres negras, assim como o assassinato de negros (as) LGBT, são algumas demonstrações dessas posições raciais na sociedade brasileira.
2 – “Vamos lutar por cotas sociais, não só cotas raciais” aqui se tem um equívoco e falta de esclarecimento, já existe cotas sociais, existem vagas exclusivamente para elas, que seriam as cotas por renda per capita e estudantes de escolas públicas. Logo, se você se autodeclara pardo e está automaticamente concorrendo pelas cotas raciais, isso implica que você será avaliado por essa condição. Ressaltamos novamente, se autodeclarar pardo não significa necessariamente que você será considerado habilitado para assumir a vaga como pardo. Isso não faz necessariamente você ser lido socialmente como uma pessoa negra. Lembrando que a existência das bancas de heteroidentificação tem como objetivo fazer uma avaliação, e considerar ou não você habilitado para concorrer a vaga por cotas raciais.
3 - “acostumada intimidar aluno”; “que ela é extremista pelo menos!” “essa mulher é feia e preconceituosa, essa aqui é a questão” "demonstra que ela gosta de violência, ela gera” e “isso tudo pode virar prova contra ela”. Em um grupo do whatsapp denominado “PPIs” foi divulgado as pessoas especificas que estavam compondo as bancas de heteroidentificação, dentre elas uma militante do movimento e pesquisadora das questões raciais há mais de 30 anos. Ser considerado “extremista” por lutar por igualdade racial e tentar contribuir institucionalmente para isso não é ser “extremista”, mas sim uma pessoa qualificada para estar naquele lugar. A partir disso, usam todo tipo de argumento preconceituoso para tentar desqualificar as suas decisões de indeferimento no curso de Medicina, haja visto que se fosse qualquer outro curso dessa instituição, não teria toda essa movimentação e espetáculo pela mídia local. Ao mesmo tempo, fazer associação entre negritude como “gostar de violência” é racista! E desconsidera que na história desse país a violência sempre desumaniza as pessoas negras, e “quem gosta de violência” são os brancos. Logo, também, desqualificar as bancas de heteroidentificação abre toda uma prerrogativa de tentar também desqualificar as políticas de ações afirmativas, aqui temos um problema sério e não podemos aceitar isso.
4 – “então pra que serve essa declaração que eles impõem” se autodeclarar é uma conquista política do movimento negro e indígena na contramão que foi adotado nesse país da política de embranquecimento, logo, essa é a sua finalidade e importância. Mas isso, dentro de um sistema de políticas públicas, não qualifica todos que se autodeclaram, aptos, para serem admitidos às vagas raciais. “nossa universidade está contaminada por questões políticas e ideologias” e qual é o problema? As políticas de ações afirmativas são necessariamente e na sua essência, política. “É que suas posições político-ideológicas sobre a questão racial contaminaram o discernimento” considerar essa dimensão é desqualificar uma profissional e uma cientista que estuda as relações étnicas raciais há mais de três décadas, isso que vocês chamam de posições ideológicas, é ciência. E ciência se faz com seriedade, honestidade e muita pesquisa.
O que gostaríamos de escurecer é: não somos contra as reivindicações, não é esse o nosso objetivo, mas é necessário escurecimento tanto como está sendo feita essas reivindicações por parte dos cotistas pardos, como buscar aprimorar as bancas de heteroidentificação. Justamente porque se tem duas problemáticas serias que não podemos cair: A primeira diz respeito que questionar ou colocar a segurança dos avaliadores das bancas de heteroidentificação em risco é desqualificar as politicas de ações afirmativas que é uma conquista do movimento negro, e desqualificar os avaliadores é desconsiderar suas competências técnicas, cientificas e de militância no movimento de décadas. As políticas de ações afirmativas são uma disputa política, assim como as bancas de heteroidentificação é uma disputa, e o movimento dos que são contra as cotas só atualizou o discurso, mas a essência é a mesma. A segunda situação diz respeito que se autodeclarar não significa necessária que você seja negro e esteja apito a assumir as ações afirmativas raciais, ao mesmo tempo que dentro desse movimento a pessoas brancas, lidas socialmente como brancas, logo é também necessária que a própria branquitude reconheça os seus privilégios. E há indeferimentos que estão corretos e poder corrigir que brancos não roubem as vagas das pessoas que são realmente pardas na nossa cidade.
A professora usa esse exemplo para dizer como a heteroidentificação configura “uma questão ética e jurídica delicada”. A banca “serve para operacionalizar acessos, direito, precisa da objetividade”, disse um membro presente. É certo que, ainda que falemos sobre políticas públicas, as comissões também mobilizam emocionalmente os envolvidos em diferentes níveis, porque fala sobre um processo de reparação história para a comunidade negra (RODRIGUES, 154, p. 2021)
Como colocado por (RODRIGUES, 2021) as bancas de heteroidentificação se configuram como ética e jurídica, aliada ideologicamente à comunidade negra. E não será um par de brancos de famílias ricas mimados que vão conseguir desqualificar um movimento histórico da negritude, legitimo e que busca reparação em um país que foi fundado na escravidão e na colonização. Ao mesmo tempo “é adequado pensar que no atual contexto em que as políticas afirmativas estão sendo paulatinamente ampliadas para a população negra, será necessário resolver qual o lugar dos “pardos” e como podemos traduzir, levando em consideração o contexto brasileiro, o “colorismo” como problema teórico e político nosso” (RODRIGUES, 2020, p. 14). Ao mesmo tempo que as bancas de heteroidentificação da Unifap precisa buscar formas de aprimoramento para que a universidade e as ações afirmativas estejam mais escurecidas para a sociedade amapaense e não venhamos cair em armadilhas que coloque sob suspeição a sua atuação e competência técnica e científica como considerar o contexto local e buscar cursos de formação de divulgação entre as escolas e a universidade sobre as relações étnicas-raciais.
REFERÊNCIAS
RODRIGUES, Gabriela Machado Bacelar. Mulatos, Pardos, "Afrobeges": Negros De Pele Clara Ou "Afroconvenientes"? 32ª Reunião Brasileira De Antropologia, Realizada Entre Os Dias 30 De Outubro E 06 De Novembro De 2020.
RODRIGUES, Gabriela Machado Bacelar. (Contra)Mestiçagem Negra: Pele Clara, Anti-Colorismo E Comissões De Heteroidentificação Racial. Universidade Federal Da Bahia Faculdade De Filosofia E Ciências Humanas Programa De Pós-Graduação Em Antropologia, 2021.
NOGUEIRA, Oracy. Preconceito Racial De Marca E Preconceito Racial De Origem Sugestão De Um Quadro De Referência Para A Interpretação Do Material Sobre Relações Raciais No Brasil. Tempo Social, Revista De Sociologia Da USP, V. 19, N. 1.
LINK: o procedimento de heteroidentificação – Universidade Federal do Sul da Bahia. https://200.128.32.152/images/HETEROIDENTIFICAO_CARTILHA_FINAL_PDF_PARA_IMPRESSO_compressed_1_1.pdf
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